Por Alessandra Monnerat*
Era 1997 e a astrofísica Thaisa Storchi Bergmann tinha sido chamada para uma missão de três meses no Observatório Interamericano de Cerro Tololo, no Chile. Mas a gaúcha tinha que trazer consigo um convidado indesejado para os colegas cientistas, que observavam o céu à noite e dormiam de dia. Era seu terceiro filho, recém-nascido, que ela ainda estava amamentando. Apesar da resistência, a pesquisadora conseguiu acomodar o bebê e uma babá em uma casa perto do observatório.
Apesar de representarem 49% da produção científica brasileira – cenário de equidade apenas visto em Portugal, segundo dados da editora de publicações científicas Elsevier – elas têm carreiras mais tardias e passam por dificuldades para alcançar postos mais avançados nos laboratórios. Conciliar a maternidade com a carreira acadêmica é um dos maiores desafios que as mulheres enfrentam ao escolher o caminho da ciência.
Thaisa levou seis anos para completar o doutorado, divididos entre dar aulas, preparar sua tese e cuidar dos filhos. Hoje, ela é uma das mais respeitadas especialistas em buracos negros supermassivos. De 1994 a 2016, a cientista publicou 200 artigos na base de dados ADS, da Nasa, e em 2015 ganhou o prêmio For Women in Science (Para Mulheres na Ciência), da L’Óreal. Aos 61 anos, ela chefia o Grupo de Pesquisa em Astrofísica da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
“Na verdade, tive ajuda da minha mãe e de uma empregada doméstica, pois meu marido trabalhava e viajava bastante”, disse Thaisa a respeito da divisão de tarefas em casa. “Mas na maior parte do tempo ele me apoiou no sentido de não reclamar de eu fazer isto ou aquilo, ou estar ausente no aniversário dele, muitas vezes em feriados, me ausentando para ir observar nos primeiros tempos”.
Mulheres são 27 dos 112 Pesquisadores Sênior do CNPq
Embora o número de bolsas concedidas pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) seja praticamente o mesmo para homens e mulheres, na categoria de produtividade em pesquisa a representatividade feminina era de apenas 35,5% em 2015.
E a parcela diminui em níveis mais altos da hierarquia científica – apenas 27 mulheres haviam chegado à modalidade de Pesquisador Sênior, de um total de 112. A categoria é reservada “ao pesquisador que se destaque entre seus pares como líder e paradigma na sua área de atuação” e permaneceu por pelo menos 15 anos nos níveis 1A ou 1B. No nível 1A, o mais alto do CNPq, em 2015 as mulheres representavam 1 em cada 4 pesquisadores. Thaisa já era uma das cientistas brasileiras neste patamar.
A diferença também fica visível no valor investido para estas bolsas de produtividade. Aos homens foram reservados R$ 110,7 milhões em 2017, 32% do total de auxílios. Já para as mulheres, praticamente metade do valor. Apenas R$ 57,6 milhões foram gastos em bolsas de produtividade de pesquisa, 18% da verba que o CNPq concedeu a bolsistas mulheres.
Um dos entraves nesse sentido é a falta de um direito estabelecido de licença-maternidade. Somente em 2006 o CNPq aprovou uma portaria que concede 90 dias de afastamento para as bolsistas após o parto. Quatro anos mais tarde, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal do Nível Superior) permitiu a prorrogação de benefícios para pós-graduandas por até quatro meses.
A presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos, Tamara Naiz, afirma que falta uma lei clara que assegure o direito para as mulheres. Apenas recentemente, um projeto da deputada Alice Portugal (PC do B) passou pela Câmara e segue para o Senado. Para Naiz, é um passo para tornar a carreira de pesquisa compatível com as fases da vida das mulheres.
“A dupla e tripla jornada afeta muito as pesquisadoras. Elas têm que dar aulas, produzir pesquisa e trabalhar em casa. As mulheres demoram muito a ter o ápice da carreira acadêmica por isso. As cientistas mais renomadas estão com 60 anos. Esse fator do trabalho doméstico afeta fortemente. Para conseguir uma liberação, você tem que colocar uma mulher trabalhando pra você”, pontua.
Mais Saúde, menos Engenharia
Os espaços também são particularmente pouco ocupados por elas nas chamadas “ciências duras”. Em Engenharia e Computação, são 4,9 mil pesquisadoras do CNPq em todo o país, 36% do total neste campo. Já em Ciências Exatas e da Terra, elas são apenas 34%, com 7,2 mil representantes. Em todas as outras áreas, existem mais cientistas mulheres que homens. Os destaques são as áreas de Saúde (68%), Linguística, Letras e Artes (64%) e Biológicas (61%).
Com menos mulheres, também é menor o número de artigos científicos produzidos por elas. Segundo a Elsevier, o período de 2011-2015 viu uma produção acadêmica de apenas 25% de mulheres como autoras principais no campo da Engenharia. Em Saúde, a situação é inversa: 79% dos artigos tinham um nome feminino como primeiro autor.
Um artigo publicado na revista Nature em 2013 aponta que é menor o número de publicações de mulheres em áreas em que a pesquisa é mais cara, como é o caso da física de alta energia. A professora Cassidy Sugimoto, uma das autoras do estudo, afirma que essa tendência está provavelmente relacionada a políticas e procedimentos de financiamento.
A pesquisadora Sarah-Jane Leslie, do Departamento de Filosofia da Universidade de Princeton, tentou explicar essa diferença em um artigo para a revista Science. Segundo ela, homens têm tendência a se saírem melhor em campos onde o talento inato é mais valorizado em oposição ao trabalho duro e ao esforço. Isso porque existe a falsa convenção de que as mulheres não têm essa “habilidade natural”.
Para Hildete Pereira de Melo, economista da UFF (Universidade Federal Fluminense) e pesquisadora de gênero há mais de 30 anos, a explicação para esse fenômeno é puramente cultural. “As mulheres têm uma educação tradicional totalmente voltada para as questões sociais. Na época da puberdade, elas são direcionadas para questões da vida e da educação. A educação é recheada de estereótipos para cuidarmos de pessoas”, explicou em entrevista à Gênero e Número.
Globalmente, segundo dados da Nature, todos os países com maior produtividade científica veem os artigos produzidos primariamente por mulheres recebendo menos citações do que os assinados por colegas homens de posição equivalente. A desvantagem feminina é ainda maior pela menor mobilidade internacional: elas se beneficiam menos de colaborações com institutos de outros países.
No Brasil, a média de citação, calculada pelo número total dividido pela expectativa ideal de citações, é de 0.9479 em artigos publicados por homens. Em pesquisas assinadas por mulheres, o número caiu para 0.8015. Um conceito relacionado a esta estatística é o chamado “Efeito Matilda”, fenômeno inicialmente descrito pela sufragista norte-americana Matilda Gage em 1870: a invisibilização de pesquisadoras mulheres em laboratórios, que têm seu trabalho atribuído aos colegas homens.
Para Hildete, este tem sido um problema permanente na pesquisa científica. “As mulheres sempre estiveram nos laboratórios, mas estavam invisíveis. Mesmo quando são melhores, elas tendem a ser eclipsadas pela figura masculina. Marie Curie teve que dividir o Prêmio Nobel [em 1903] com outros dois homens. Ela só ganhou o Nobel sozinha depois que o marido, Pierre Curie, morreu. A sociedade tende a só ver o masculino no mundo científico”, lamentou.
Corte nos investimentos dificulta pesquisa
De 2014 a 2016, os pesquisadores homens do CNPq perderam cerca de R$ 407,9 milhões em verba – de R$ 409 milhões a R$ 1,6 milhão. Para as mulheres, o financiamento ficou ainda mais escasso: o investimento em pesquisa foi do pico histórico de R$ 192,2 milhões em 2014 para apenas R$ 428 mil em 2016.
Outro aparente prejudicado é o programa Mulher e Ciência, criado pelo governo federal em 2005 para estimular a pesquisa na área de gênero e a participação das mulheres nas ciências e carreiras acadêmicas. Uma das ações da iniciativa, o Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, teve sua última edição em 2015. O site informa que o concurso de redações, artigos científicos e projetos pedagógicos de 2016 foi adiado para 2017, com realização em data ainda não divulgada.
Outras ações do CNPq, como os editais Relações de Gênero, Mulheres e Feminismos e a chamada Meninas e Jovens nas Exatas, Engenharia e Computação tiveram suas últimas edições em 2012 e 2013, respectivamente.
A diretora de Engenharia, Ciências Exatas, Humanas e Sociais do CNPq, Adriana Maria Tonini, explica que o Mulher e Ciência tem investido em ações de divulgação, como o projeto Pioneiras da Ciência no Brasil, que relembra a trajetória de pesquisadoras mulheres. A edição mais recente é de junho do ano passado.
Segundo ela — a única mulher na diretoria do órgão federal — o programa também tem impulsionado medidas internas para o fomento da equidade de gênero. Outra iniciativa em estudo é a possibilidade de prorrogar a vigência de bolsas em caso de parto ou adoção para todas as modalidades do CNPq. Atualmente, apenas algumas modalidades têm esse direito.
Tonini elenca outro esforço para fazer o processo de concessão de bolsas e de determinação de categorias mais equitativo. Inicialmente o pedido de bolsa é avaliado por consultores ad-hoc da área escolhida e, após esta etapa, há uma avaliação comparada dos pedidos que é realizada pelo comitê da área. “Um dos esforços que o CNPq tem feito para minimizar o viés oculto de gênero é no sentido de tornar os comitês de assessoramento mais paritários em termos de gênero”, explicou.
Mas a diretora ressalta que a dificuldade da inserção das mulheres na pesquisa não é um problema exclusivamente brasileiro. “A segregação vertical, ou seja, a sub-representação das mulheres na ciência e tecnologia em posições de maior prestígio como, por exemplo, na bolsa PQ [de Produtividade em Pesquisa], é um desafio que ultrapassa as fronteiras nacionais, infelizmente”, disse. “A segregação horizontal, que é a histórica sub-representação das mulheres em áreas do conhecimento, é um fenômeno mundial, ainda que as áreas possam variar, dependendo da cultura”.
Alessandra Monnerat é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
Reproduzido de Gênero e Número
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