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A política tem sido, historicamente, um espaço masculino. Basta um rápido olhar para as hierarquias nos partidos políticos, o plenário dos legislativos nacionais, estaduais e municipais ou para os gabinetes onde estão instalados os integrantes do primeiro escalão nos governos para que se entenda o que isso significa. Não é de agora que é assim. Embora no Brasil as mulheres tenham direito a voto desde 1932 e o exerçam em condições iguais às dos homens desde 1946, sua presença em cargos políticos tem sido restrita.


A partir de meados do século XX, foi sendo difundido o entendimento de que há algo de errado quando um processo regido por regras apresentadas como neutras em relação ao sexo resulta em assimetrias tão visíveis, eleição após eleição. No Brasil, a sub-representação das mulheres na política passou gradualmente a ser tratada como um problema, no debate público, a partir do processo de transição da ditadura de 1964 para o regime democrático. Em 1997, foi aprovada a lei que reserva para elas 30% das vagas nas listas partidárias, nas eleições para a Câmara dos Deputados, as assembleias estaduais e as câmaras municipais. Embora tenha sido pouco efetiva, com ela mais alguns passos foram dados no reconhecimento público de que a sub-representação das mulheres é algo a ser superado.
Ainda assim, a aposta dos partidos nas candidaturas femininas e os resultados das eleições permaneceram muito aquém do objetivo. O ambiente político institucional também não se tornou menos hostil para as mulheres que, apesar das barreiras, vencem eleições e ocupam cargos. A primeira mulher eleita para a Presidência da República no país foi deposta, em 2016, em um processo marcado pela misoginia. O novo ocupante do posto, Michel Temer, nomearia, então, um ministério inteiramente formado por homens brancos. A repercussão a essa nomeação mostrou, mais uma vez, que a denúncia do caráter masculino da política tinha sido incorporada ao debate público de modo significativo, mas que as barreiras persistiam.
A exclusão das mulheres é incontornável para compreender os limites da nossa democracia, antes e depois de 2016. O que vou dizer talvez pareça paradoxal, mas foi nesse contexto de exclusão que as mulheres atuaram, sistematicamente, na história recente do Brasil. Sem a análise dessa atuação, corremos o risco de não compreender alguns dos embates agudos na política brasileira hoje e indagar inocentemente: “De onde surgiram essas mulheres?”.
Durante a ditadura de 1964, os feminismos se organizaram na desconfiança em relação ao Estado, algo que se modificaria com a democratização, nos anos 1980. Conquistas significativas desse período expressam a institucionalização da agenda feminista, sobretudo na saúde, com a criação, em 1983, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism), e no combate à violência, com a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams), a partir de 1985. Esse foi também o ano de criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), na esteira da institucionalização, desde 1982, de conselhos similares nos estados e municípios.
A atuação na Assembleia Constituinte, que contava com apenas 26 mulheres eleitas (5% do total de parlamentares), resultou da articulação do CNDM com organizações de trabalhadoras rurais, trabalhadoras domésticas, centrais sindicais (CGT e CUT), associações profissionais, grupos feministas e movimentos sociais de todo o país. A “Carta das mulheres aos constituintes” priorizava temáticas “gerais” e “específicas”, simultaneamente. A abordagem dos problemas das mulheres conjugava gênero, classe, raça e sexualidade na defesa da reforma agrária, de direitos trabalhistas, de direitos reprodutivos e sexuais, de acesso universal à saúde e à seguridade.
O pacto social expresso na Constituição de 1988 sofreria uma série de reveses, mas criaria também um novo patamar para as disputas políticas. Nos anos 1990, a incorporação de diretrizes neoliberais do Consenso de Washington pelo governo brasileiro impôs recuos nos investimentos sociais e na regulação pública de setores importantes da economia. Ao mesmo tempo, fóruns internacionais de debates com forte participação de diferentes setores da sociedade civil organizada e acordos multilaterais abriam a possibilidade de constranger mais diretamente os Estados nacionais a reconhecer a diversidade entre as pessoas e promover o respeito à igual dignidade por meio de leis e de políticas. Novas compreensões dos direitos em disputa e dos grupos que demandavam reconhecimento como sujeitos políticos legítimos se estabeleceram. Foi esse o ambiente em que movimentos LGBT e feministas ampliaram seus recursos materiais e simbólicos para atuar nos espaços nacionais. Houve custos, ajustes em suas agendas, mas também houve ganhos de legitimidade.
Foi também nos anos 1990 e no processo de mobilização na esfera internacional que foi criada uma das principais coalizões feministas de abrangência nacional, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), fundada em 1994. Pouco depois, em 2000, seria fundada a Marcha Mundial de Mulheres, originada do movimento “2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência”. Nos dois casos, o horizonte programático anunciado foi a democratização radical do Estado e o combate à agenda neoliberal e seus efeitos. Além disso, a larga presença de mulheres e organizações nos encontros do Fórum Social Mundial desde sua primeira edição, em 2001, anunciava uma participação intensa dos feminismos na construção de alternativas políticas na virada do século.
Entendo que adentramos o século XX com novos pontos de inflexão na trajetória política dos feminismos. Elenco, abaixo, três razões para esse entendimento.
A partir da chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo, em 2003, cresceu o diálogo com os movimentos feministas e a presença de suas representantes no Executivo federal. A Secretaria de Políticas para Mulheres, criada em 2003, correspondeu à ampliação de recursos e potencial de articulação no âmbito estatal. A maior efetividade dos dispositivos para participação previstos desde a Constituição de 1988 também teve seu papel. Houve, no período, quatro Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres (em 2004, 2007, 2011 e 2016), que reuniram milhares delas em Brasília.
Ao mesmo tempo – e ainda é preciso compreender as conexões entre as duas coisas, uma vez que essa não é uma realidade apenas nacional –, o feminismo ultrapassou os circuitos dos movimentos, organizações e encontros existentes até aquele momento. O campo feminista se ampliou e se tornou menos centralizado, com coletivos surgindo por todo o país e formas de mobilização facilitadas pela internet. Campanhas contra o assédio sexual e contra o racismo com que se defrontam as mulheres negras no Brasil, para utilizar dois exemplos, têm migrado das redes sociais para as páginas dos grandes jornais. Nas denúncias feitas pelas mulheres, é evidente o recurso a uma linguagem proveniente das lutas e da crítica feminista que se acumulou nas décadas anteriores.
Ao mesmo tempo, e esta é a terceira razão que elenco, o feminismo se tornaria ainda mais diverso. Vem de longe o diálogo com organizações de mulheres negras e lésbicas e a abordagem interseccional dos problemas das mulheres brasileiras. Desde pelo menos os anos 1970, documentos e jornais feministas demonstravam preocupação com a realidade diversa e desigual das brancas e das negras, das que vivem em centros urbanos e em áreas rurais, das que se profissionalizavam e alcançavam salários acessíveis a uma parcela restrita da população e das trabalhadoras domésticas em que se apoiaram para que a divisão sexual do trabalho e o cuidado demandado pelos filhos fossem atenuados. Mas os anos 2000 trouxeram mais vozes à cena. Algumas delas puderam ser ouvidas nas ruas e nos documentos das Marchas das Margaridas (2000, 2003, 2007 e 2011), da Marcha Nacional das Mulheres Negras (2015), da Marcha das Vadias (2011 e 2012). Puderam ser ouvidas também nas manifestações em defesa do direito ao aborto ocorridas por todo o Brasil em novembro de 2015, motivadas por um projeto de lei da Câmara dos Deputados que, se aprovado, comprometerá o atendimento de mulheres que sofreram estupro na rede pública de saúde, nas manifestações contra o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e em defesa da democracia.

É preciso registrar que essas inflexões ocorreram ao mesmo tempo que os conflitos em torno do gênero se tornavam mais agudos nas disputas políticas. Ao menos desde 2014, com o início dos debates sobre o Plano Nacional de Educação, vem sendo gestada a versão brasileira da campanha internacional contra a agenda da igualdade de gênero e do respeito à diversidade sexual. Embora tenha origem no Vaticano ainda nos anos 1990, como reação ao avanço da agenda de gênero em encontros internacionais como a IV Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU, que aconteceu em Pequim, em 1995, ela chegou ao centro das disputas políticas em diversos países latino-americanos na segunda década do século XX. No Brasil, cresce com a onda conservadora que investe contra o pacto social representado pela Constituição de 1988 e contra os fundamentos da agenda de direitos humanos e sociais que balizou, desde então, as controvérsias e os eventuais avanços na construção de normas e políticas.
Os feminismos se tornaram mais visíveis, as reações se tornaram mais abertas. O feminismo de Estado, que cresceu com a chegada do PT ao governo em 2003, pode ser lido por seus limites, mas também pelo que produziu nesse contexto. Houve alguma aceitação dos termos em que os governos petistas se estabeleceram, é verdade. Mas houve também uma série de resultados. Os Planos Nacionais de Políticas para Mulheres, produzidos nesse período, são documentos significativos. Incorporam os resultados das Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres e demonstram a importância da estrutura organizacional adquirida com a Secretaria de Políticas para Mulheres. Graças a essa estrutura, mulheres ligadas aos movimentos feministas contribuíram para a construção da legislação que igualou os direitos das trabalhadoras domésticas aos de outros trabalhadores (PEC das Domésticas, 72/2013, regulamentada em junho de 2015), para a criminalização e combate à violência contra as mulheres (Lei Maria da Penha, 11.340, sancionada em 2006, e Lei do Feminicídio, 13.104, sancionada em março de 2015), para normas e políticas públicas com o objetivo de garantir direitos reprodutivos e direitos sexuais (Normas Técnicas do Ministério da Saúde, editadas em 2005 e 2011), para a adoção de orientações educacionais e políticas de incentivo para uma socialização mais igualitária (Programa Brasil sem Homofobia, de 2004, e Programa Mulher e Ciência, de 2005). São alguns exemplos. Muitos deles poderiam também ser utilizados para discutir a dinâmica de avanços e retrocessos que se estabeleceu, com as exigências de recuos na agenda de gênero pelos grupos conservadores que formaram a base de apoio dos governos petistas no período.
O que vem sendo definido em algumas abordagens e análises políticas como uma política de “identidades” tem uma história e um alcance político bem mais amplos. Os feminismos, assim como os movimentos LGBT, negros e indígenas, contribuíram para politizar a política no período de construção democrática. Esse é, em minha compreensão, o principal motivo para que se transformem em alvos neste momento. Agenda moral conservadora e projeto neoliberal convergem na promoção do fechamento da democracia, atuando pela retirada de direitos fundamentais, mas também para a difusão de uma lógica que depende da despolitização e da reprivatização de diferentes dimensões da vida.
Uma das maneiras de abordar a história das democracias liberais é pensá-la como um processo em que o acesso a direitos individuais se ampliou ao mesmo tempo que se definiram barreiras de novo tipo para o acesso de grupos, de temas e de interesses ao espaço político. A própria conformação do espaço da política é uma questão fundamental nessa dinâmica. As fronteiras entre o que seria parte da vida doméstica e pessoal e o que teria caráter público e relevância política permitiram isolar espaços, sujeitos e experiências, retirando-lhes o caráter político. Esse é um dos sentidos em que as mulheres entraram em desvantagem na esfera pública no mundo moderno.
Essa mesma perspectiva nos leva à ação política dos movimentos sociais. Movimentos feministas, movimentos LGBT, movimentos negros e movimentos indígenas têm pautas e histórias distintas e, em alguns casos, conflitivas. Mas chamo atenção aqui para o fato de sua luta envolver o questionamento das fronteiras da política. É que a conformação do ambiente e das instituições políticas é, em muitos sentidos, a história de sua exclusão. Seu corpo, suas experiências e, em muitos casos, a linguagem com que as trazem a público em sua luta organizada são “estrangeiras” à política que assim se definiu. Há uma relação significativa entre a conformação da esfera pública estatal como “lugar de enunciação de todo discurso que aspire a revestir-se de político”, para citar Rita Segato em La guerra contra las mujeres, e as barreiras enfrentadas por grupos marginalizados para a politização de relações cotidianas de opressão.
Nos esforços de politização realizados pelos movimentos sociais que mencionei, outras arenas e identidades vêm a público. Os feminismos politizaram o cotidiano da exploração do trabalho das mulheres; a violência doméstica; o controle do seu corpo por pais, companheiros e pelo Estado; o caráter masculino do Estado e da política mais amplamente. Evidenciaram o caráter de gênero dos modelos explicativos hegemônicos, mostrando que a neutralidade pode ser bem posicionada, por implicar a reprodução das assimetrias. A tematização da perspectiva das mulheres, assim como de suas necessidades e de seus interesses, permitiu evidenciar quais perspectivas, quais necessidades e quais interesses são considerados em uma política masculina. Por isso, a posicionalidade foi trazida ao debate público como fundamento da legitimidade das pautas defendidas pelos movimentos – ainda que disso derivem limites que eu não teria como discutir aqui. A caracterização daqueles que são majoritários na política como “homens, brancos e proprietários” pode ter até se tornado um clichê na luta política, no contexto ambivalente de que procurei falar neste artigo. Mas ela apresenta um esforço que não é banal: mostrar que a atuação desses homens é, como qualquer atuação política, posicionada e identificada socialmente.

*Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da UnB.

https://diplomatique.org.br/de-onde-surgiram-essas-mulheres/ acessado em 09.01.2018

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